quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Seu tapa não esconde seu medo

Ah, o limite! Esse nosso querido e tão almejado desconhecido. Desconhecido não, na verdade multifacetado. Sim, o limite para nós é multifacetado. São tantas caras que ele tem, que se hoje eu tivesse que dar uma definição para ele, seria quase impossível justamente porque o experimentei de diversas formas na minha história de vida.

Fazendo um paralelo com a Antroposofia, ciência criada por Rudolf Steiner no final do século XIX e que escolhi como caminho de vida, vou tentar trazer um pouco mais de como sinto e vejo isso hoje.

Primeiramente Steiner diz que quando estamos no papel de educadores, devemos ter verdadeira devoção por aquela individualidade que se coloca diante de nós e que a educação nada mais é do que permitir que aquele ser que nos escolheu possa cumprir o seu papel dentro da vida. E nosso papel é de acolher e sustentar esse processo que acontece junto a nós.

Parte do pressuposto que todo indivíduo tem uma missão de vida e que nós educadores devemos proporcionar a ele as condições necessárias para que possa desabrochar toda essa riqueza. O respeito se dá no momento em que você entende isso e passa a olhar a criança que está diante de você como algo a ser libertado e não moldado. E isso faz toda a diferença.

Assim como Michelangelo libertava suas esculturas com o cinzel, nós também temos esse papel, o papel do artista que cuidadosamente vai esculpindo aquela peça até que o que está dentro dela se revele. Esse é o limite que liberta.

Se a criança encontra limites cuidadosos, dados a partir dos adultos, pouco a pouco encontra a sua individualidade e se sente livre para deixá-la desabrochar.

Bons tapas e palavrões, assim como boas surras e violências físicas podem ser limites, mas lhes parecem boas formas de libertar essa obra de arte diante de você?

Temos uma imagem cristalizada dentro de nós, de que limite é duro, frio, difícil e ruim de encarar. Talvez por isso hoje tantas pessoas fiquem submetidas a situações totalmente indignas, por acreditarem que ultrapassar um limite é tão difícil e penoso, mudar nada mais é que dar um passo em direção ao novo ou passar dos limites das nossas áreas conhecidas. A criança até os 14 anos vive o mundo, os adultos vivem no mundo e isso é muito diferente. Viver o mundo significa que a criança vive na plenitude. Quando ela toma um copo de água, ela não só mata sua sede como também sente profundamente o prazer de beber aquela água, sente o prazer de uma boa comida, sente o calor de um bom abraço. Isso é viver o mundo. E com o limite acontece da mesma forma, ela não compreende o limite ela o vivencia.

O primeiro limite que a criança tem é sua própria pele. Quando bebês o que separa a criança do mundo não é sua consciência e sim sua pele. Sua pele é um grande órgão sensorial, que a permite perceber pela primeira vez o limite de si mesma. Então banhos quentes, uma roupa quente, contato pele a pele com a mãe, muito abraço, ser bem apertadinha em sua manta, ser aconchegada em um delicioso sling, são limites poderosos. Ela vivencia o limite e cria uma identificação positiva com aquilo que a limita, entendendo que o limite traz segurança, e que o mundo é um lugar cheio de limites bons para se viver. Ela vivencia que o mundo é bom, e vivenciar que o mundo é bom significa olhar o mundo com olhar de gratidão, por toda essa bondade recebida.

Já o contrário, falta de afeto, falta de calor, falta de agasalho, falta de comida no momento correto, falta de sono, são vivenciadas pela criança como falta de limite, é como se ela estivesse solta em um lugar totalmente desconhecido, em um grande quarto escuro do qual ela não consegue tatear as paredes e o chão. A falta de limite físico é vivenciada pela criança como desemparo, abandono, solidão; então ela chora, como que em oração, pedindo limite. E se ela o recebe em forma de uma surra, ela vivencia a violência física, ela não sente raiva, ela não sente ódio pelo adulto, ela vive a violência física na sua essência mais profunda, ela vivencia a humilhação, o descaso, a falta de amor, a dor física e moral. Não existem exemplos mais claros de falta de limite do que uma pessoa humilhada, uma pessoa que é deixada de lado e ainda se submete aquela situação, não existe falta de limite maior do que implorar aceitação do outro fazendo de tudo para agradá-lo.

A surra dada é vivenciada pela criança como se ela não tivesse limites, como se tudo pudesse ser aceito pelo seu corpo, que ela não precisa de limites. É assim que a criança vivencia a violência física que tem o objetivo de colocar limite. Talvez essa seja a origem de um mundo tão sem limites, como esse que vivemos.

E se ela vivencia o mundo, ela também vivencia o adulto e vivenciar o adulto é vivenciar o que mora dentro daquele adulto. Se nele mora a frustração ela vivencia culpa, se dentro do adulto mora a violência ela vivencia o medo. E o medo é limitador, mas nunca limite.

Se você não tem certeza do seu não, ela vivencia o seu talvez. Se você não tem certeza de que aquilo é o melhor para ela, ela vivencia dúvida. Se você não a aceita como ela é, ela vivencia a inadequação. Falar que criança testa o limite dos pais é raso, ela não testa o seus limites, ela percebe que você não tem limites.

Quando seu filho te desobedece ele não reconhece o limite que você acredita ter, ela escancara para você que você é frágil, medroso e que não está preparado para viver a vida com coragem, que não tem certeza daquilo que diz e muito menos do que pede e faz. Não bastasse a frustração de ter um adulto incapaz diante de si, a criança agredida ainda vivencia a falta de amor de um mundo adulto incapaz de amar. O mundo adulto para a criança passa a ser um lugar onde ela não quer estar, do qual ela não quer fazer parte.

O limite para ela é bem claro agora, ela não quer ser aquele adulto, e dia após dia, vai mostrar isso para você te negando, se afastando, criando formas de deixar de te amar, e finalmente vai vivenciar o desamor na sua forma mais nociva, ela vai deixar de acreditar na vida, e no que pode vir a ser.

Então, perceba, o seu tapa não esconde o seu medo, ele não esconde suas incertezas, ele não esconde o adulto cheio de dúvidas que você é, ele não esconde como você não tem claro quais são seus limites. Afinal, sentir-se no direito de agredir alguém é não ter claro quais são seus limites morais, é não ter claro qual tipo de caráter se tem, é não admitir para si mesmo que um tapa faz sim de você alguém violento.

A sua violência escancara para o mundo o ser humano que você é e mais nada, mostra o medo que mora em você, o medo de não reconhecer seus limites, e por isso o mundo todo, inclusive seus filhos, vão tentar passar por cima de você o tempo todo. A sua violência faz de você alguém limitado, faz de você um carcereiro de si mesmo. Não tenha medo da lei que pode te jogar em uma prisão, você já está preso. E pior, lei alguma será capaz de te libertar, a não ser a sua coragem de mudar, e para isso a força física não tem importância alguma, só mesmo alguém muito forte e corajoso pode fazer isso por si mesmo.

Sim um adulto que agride pouco ou muito carrega dentro de si, um caráter violento para o qual ele não quer olhar, e justifica isso chamando de limite. Eu sou esse adulto, sei que a partir de mim podem surgir formas expressivas de violência no mundo, mas não posso mentir para mim dizendo que isso é limite, isso é justamente o oposto, falta de controle e limite sobre mim mesma. Eu tento fazer algo com isso, todos os dias, em um trabalho de autoeducação constante. Meus filhos, esses não tem nada a ver com isso.

Não te parece absurdo dizer que uma criança inspira a violência no adulto? Pois bem, é isso que falamos diariamente quando justificamos a violência com algum ato feito pela criança. Quando agrido alguém de alguma forma, sei que aquilo é meu. E, para falar a verdade, o que eu vivencio é uma vergonha enorme, uma ressaca moral, uma falta de confiança e admiração por mim mesma.

E meus filhos vivendo ao lado de alguém que luta contra a violência que é capaz de causar, vivenciam também a verdade de um adulto tentando fazer algo com aquilo, vivenciam um adulto que sobreviveu sim as surras, mas que aprendeu mesmo foi com o amor, vivenciam a verdade de alguém que tenta fazer o melhor que pode dia a após dia, que olha nos olhos deles e fala com todas as letras: “me desculpem eu errei” e com isso vivenciam o respeito. E pasmem, eles não ultrapassam os meus limites porque tem respeito a esse adulto em transformação, que se auto educa para tentar respeitá-los e deixar que eles sejam aquilo que querem ser e com isso eles percebem e vivenciam a devoção. Porque a devoção é feita de dedicação e disciplina para ser alguém melhor para quem se é devoto e eu sou devota de meus filhos.

Quando olho para eles, vejo duas pessoas que se sacrificam todos os dias para me dar a chance de me tornar alguém melhor. Abandonei a ideia falida que carregava de educar violentamente, deixei de lado essa possibilidade, resolvi dar uma chance para mim, resolvi ser bondosa comigo e me colocar limites a partir do amor que sinto por eles, resolvi me dar autoeducação a partir do amor e não me machucando. Porque a cada violência cometida existem dois violentados, o que recebeu e aquele que praticou. Cansei disso. E com isso meus filhos também vivenciam a disciplina, amor e a dedicação como ferramentas de transformação do mundo. Afinal, sua mãe se transforma a partir delas. Na minha casa faltam muitas coisas, mas amor, disciplina, dedicação e devoção são vivenciados todos os dias, por todos. Sim eu tenho filhos disciplinados, dedicados, amorosos e que creem na vida.

E todo adulto deveria ser devoto de uma criança, porque na criança vive um tesouro procurado por nós a vida inteira. Primordialmente, quando uma criança olha um adulto ela vivencia a confiança, o amor, a integridade. Você é a pessoa mais importante para o seu filho. Pare de tentar adquirir respeito a partir da violência, você é além de respeitado, você é amado e é o que existe de mais valioso na vida deles. Olhe para eles em algum momento do seu dia e vivencie o sentimento de importância na sua forma mais pura. Não seja violento, não mate a chance que a vida está lhe dando de ser alguém que será lembrado a vida inteira com amor. Se dê de presente a possibilidade de curar definitivamente as marcas emocionais que as surras que recebeu fizeram em você. Cure-se, transforme-se, torne-se um artista, veja a vida com mais cores, com limites cuidadosos faça a sua grande obra de arte, a de criar um ser humano que confia na vida.

Não precisa ter medo, acredite na sua capacidade de ser educador, pode se desarmar, pode tirar a armadura, as crianças não vão te machucar, não precisa mais machucá-las, se aceite e você verá como é incrível olhar seu filho e se divertir com as diferenças que ele tem em relação a você.

Lembrando novamente Michelangelo, a escultura já esta na pedra, por isso não adianta remar contra. O que seu filho deve vir a ser ele será, você não pode mudar isso. Então se liberte dessa responsabilidade de tornar alguém algo, esse não é o seu papel. Seu filho já é alguém, você só tem que aceitá-lo e amá-lo simples assim. Isso foi o que escolhi como limite.

Milene Mizuta

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Imagens: google.com


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